Procuro na minha caixa de e-mails pelas palavras do Lúcio. Entre as dezenas de mensagens, que começavam sempre da mesma forma
Minha querida,
havia poesia em cada linha. E neste dia havia sempre um poema novo a chegar à caixa de correio dos amigos mais próximos, como quem oferece um ramo de flores, das mais belas que se pudessem apanhar nas terras prenhes de vida, à beira rio.
Este é o primeiro Dia da Poesia sem o Lúcio, meu poeta maior. Deixou-se ficar no seu cadeirão, onde passava muitas noites a ler e a escrever, em junho do ano passado. Ser sua editora, e levar ao mundo os monumentos em forma de palavras que lhe nasciam nos dedos, a cada madrugada, foi uma das maiores honras da minha vida.
Sobrevive muito dele em cada um dos seus poemas, homem inconformado, de sentimentos e ideais à flor da pele. Talvez tenha sido o maestro Pedro Barroso quem melhor soube definir quem era António Lúcio Vieira: “Um homem que vive ele próprio, dia a dia, em poesia”, um homem “agitado convulso impulsivo desordenado, tudo assim mesmo – sem vírgulas”.
Faz-me muita falta, o Lúcio.
Faz-me falta ver a alegria com que abraçava os amigos, o brilho que ganhava a ver as provas de um livro novo, as lágrimas que teimavam em cair quando recebia uma homenagem pública.

No último e-mail que recebi dele
– Minha querida,
falava-me das noites mais longas que o costume, na cama de um hospital. E também ali escreveu poemas, pois claro.
– O que haveria eu de fazer?
Um deles, disse-me, imaginou-o a ser cantado pela Mariza. Ele, que deu letra a tantas cantigas do Paco Bandeira e a fados de muitos outros amigos, resistiu na enfermaria do hospital de Abrantes, noite dentro, agarrando-se às palavras novas que escrevia, como se a ouvisse a cantá-las.
– Embora possa não parecer, faz alguma alusão ao período que estamos a atravessar. Precisamos de partir para uma vida pós vírus, para um mundo novo e uma nova sociedade. Talvez, quem sabe, tenhamos de refazer o modo como nos relacionamos, como amamos e como construímos os dias. Mas isto sou eu outra vez a filosofar.
O poema seguiu nessa altura para o agente da Mariza. Quem sabe, um dia, poderemos ouvi-la, como ele a ouviu.

Antes deste derradeiro e-mail veio outro, há precisamente um ano.
– Hoje é o Dia da Poesia. Olha, escrevi um poema. O que é que eu podia fazer?
E aqui estou, neste Dia da Poesia, órfã de novas mensagens e de novos poemas, a recordá-lo. O que é que eu podia fazer?
TEMPO A TEMPO
Ainda procuro o silvo do vento
nos córregos da montanha
as plantas do bosque e os regatos
o pio das aves que despertam a manhã.
Ainda procuro o tanger da chuva
o canto das ondas que se entregam
a todas as praias do mar
procuro do ermo das colinas
onde a voz da montanha se liberta
as nuvens que se abrem quando a voz
irrompe no azul do firmamento
perco-me nos caminhos dos outeiros
onde as plantas e os regatos
recebem o pio das aves da manhã
e aí é o meu chão. O meu país.
A cama onde nasci e onde me deito
a minha arca de sonhos e mortalha.
Subo à montanha e às utopias
procuro, no ermo das colinas
os jardins e as pedras do lar
o bater sincopado do coração
e o grito igual ao pio das aves.
Existe em mim uma terra por fazer
um nome e um país atormentado
uma árvore em busca de raízes
uma voz ainda à espera do grito.
Ainda procuro o supremo milagre
de saber do amor ao vento
e do vento levar ao infinito a voz
e o meu nome ao sangue de toda a gente
Estou aqui para lançar no espaço
e nos olhos de toda a gente
o aroma dos bosques e dos rios
a caruma do pinheiro quase eterno
e é agora que os lanço ao vento
e é agora que acendo as árvores do bosque.
E é agora que lanço ao vento
o coração da terra, eterna pátria
onde se descerra a luz e a melodia
e se plantam as flores e os cantos
de todos os jardins da terra.
É aqui que parto e me navego
e há depois um mar de utopias
de caminhos de idas e regressos.
Os passos que dou falam de cores
dos ventos, das aves e montanhas
e ainda procuro o silvo dessas vidas.
Os passos que hão-de vir
os barcos, os caminhos e as flores
e quero para mim a voz de todas as florestas
a música de todas as esperas
o choro de todas as partidas
procuro a casa onde se guardam as promessas
exijo que os rios naveguem
os sonhos de quantos ainda sonham
exijo que os caminhos se abram
cobertos de seiva e flores
e se tornem cais de chegadas e partidas.
Ainda procuro a casa de acolher saudades
os ecos da liberdade que soltei na voz
o voo das aves, o cheiro dos prados
e o silvo do vento nos córregos da montanha
no ermo das colinas onde
a voz da montanha se liberta
e onde sei o que pretendo ser.
Um pouco de mim, o muito de todos
a música de todas as esperas
cidadão de todos os países
o fruto maduro da árvore da vida
a mão que semeia coração
numa terra onde os cardos
atapetam os caminhos.
Viajante sem viagem
acendo as candeias do futuro
e lanço-as no espaço como um pássaro
desbravador de madrugadas
espelho dos voos do coração e
companheiro dos ventos da montanha.
Estou aqui e persigo e persigo
a suave viagem dos rios
o voar das aves da madrugada
o morno vento da montanha
e a luz dos fins de tarde.
Há uma pátria em cada alento
há uma esperança em cada voz
e um coração rebelde
em cada hora de cada dia. De cada vida.
Os países não se escrevem sem destino,
os corações não se amainam sem afagos
nem o amor se conforta
sem os salmos dos poetas
sem o vento dos prados e
sem o perfume dos anseios
dos sonhadores que nascem
dos frutos do tempo
de todos os amores
da terra onde os sonhos dos homens
escreveram liberdade.