Realizou-se na Sertã mais uma Maratona da Leitura – 24 horas a Ler, que este ano teve como tema central a literatura africana de língua portuguesa, tendo como convidados especiais os escritores Germano Almeida, Ondjaki, Valter Hugo Mãe, Dulce Maria Cardoso e Gonçalo Cadilhe, entre outros.
Além das leituras em voz alta, entre as 0 e as 24 horas do dia 6 de julho, esta terceira edição estendeu-se por três dias e dinamizou workshops de escrita, espetáculos performativos, concertos narrativos, projeção de filmes, lançamento de livros, oficinas culturais, exposições e um showcooking de gastronomia africana. Às aldeias mais isoladas da região chegaram também contadores de histórias com a BiblioAndante, a biblioteca itinerante da Sertã.
A Médio Tejo Edições marcou presença na feira do livro do evento e a diretora editorial Patrícia Fonseca leu em palco um excerto do romance vencedor do Prémio Literário do Médio Tejo 2017, “na massa do sangue”, de Evelina Gaspar.
“A nossa vida ia-se sucedendo numa variedade de tarefas que cabia continuar a executar na forma que nos era ensinada pelas mulheres mais antigas, cabendo ao sangue donde nós vínhamos passar testemunho para a geração nascida a seguir. Era como se houvesse entre as mulheres um contrato que se prendia, na feição que assumia, com o governo-geral das casas mas que era na verdade um acordo de sangues com vista ao prosseguimento da ala feminina das famílias, de forma a acautelar, no futuro, a sobrevivência do nosso género.
Minha mãe era uma severa mestra dos lavores domésticos porque acreditava que era o trabalho bem feito e sem desmazelos que dava às mulheres a dignidade maior a que elas podiam aspirar. Coitada daquela de quem o povo dissesse que era desleixada nos seus afazeres, pois que representava isso para a própria grande vergonha. Eu, com o que sonhava todos os dias era com a liberdade de poder brincar à minha vontade e não com o ser obrigada a trabalhar, porém aceitava aprender tudo quanto minha mãe me quisesse ensinar por mor do grande respeito que lhe tinha. Contudo, por mais que eu tivesse tenção de lhe obedecer sempre, havia uma coisa que eu tardava em aprender e que era ser a mão da matança.
À conta disso muitas reprimendas recebia eu de minha mãe que se não conformava com a minha falta de habilidade. Quer fossem coelhos, galinhas, patos, perus, cabritos ou borregos, tinham as mulheres forçosamente de aprender a matar para alimentar as famílias, embora na minha casa pouca carne se comesse. Os porcos não, porque aí a missão de matar cabia inteira aos homens e de ir lavar as tripas ao rio, que era o serviço das mulheres, disso gostava eu. Com os pés de molho e as saias arregaçadas até à altura do joelho, entregávamo-nos nós à animação por entre os salpicos das conversas cruzadas. As casadoiras atiravam brejeirices umas às outras sobre namoricos encalorados que, verdadeiros ou inventados, acabavam por alimentar a imaginação de todas e até as casadas punham de lado, nesses dias de festança, o comedimento que exigia a sua condição. Dentre essas, as mais sisudas, de início, iam como que empurradas a contragosto pela mocidade alegre das solteiras, mas depois lançavam já de sua lavra pilhérias marotas para o ar, rendendo-se à galhofa geral. Ignorantes ainda dos sentidos velados do quanto se ia dizendo, as mais mancebas tentavam tirar umas por outras e era desse modo que se fazia a sua primeira instrução nos meandros encobertos dos temas sexuais.
Porém um dia houve, devia eu andar pelos dez ou onze anos, que saindo minha mãe de casa manhã cedo para ir sachar o milho, me disse, apontando o dedo ameaçadora, matas aquele frango que está maiorzito e fazes tu hoje o almoço para todos e sem desculpas. Fui sentar-me à beira do poço mal ela se foi para chorar a minha desgraça, pois que me sentia incapaz de acatar a incumbência que minha mãe, com tamanha dureza, me impunha sobre os ombros.
Nunca percebi porque escolhemos sempre, os três, esse lugar para chorar sozinhos. Talvez o poço, por líquida sugestão, atraísse as nossas águas profundas à flor dos olhos. Ficava ele no centro dum jardim modesto que minha mãe mantinha na frente da casa e que, para lá da hera intemporal e das inevitáveis sardinheiras, tinha apenas uns quantos arbustos de rapaziada e alguns vasos com margaridas. A entrada do poço ficava meio metro acima do nível do chão e estava coberta por uma chapa para evitar acidentes, já que não era coisa rara ouvir-se dizer que Fulano ou Sicrano tinha caído ao poço e morrido nele afogado. Dessa água do poço bebíamos nós apenas no Verão quando se secava a fonte e passavam a voltar para casa os cântaros vazios, porque ela nos amargava na boca à conta dum travo a barro que tinha. De roda do poço havia uns degraus de pedra que davam em cruz para as quatro direcções da rosa-dos-ventos, como se o poço fosse o coração que habitasse o centro do mundo.
Chorei sentada nesses degraus por mais duma hora a lembrar como minha mãe costumava fazer para matar. Esticava com mãos decididas o pescoço da galinha e depois dava o golpe fatal com uma faca bem afiada. Ao meu pai vi-o fazer só uma vez que não era trabalho que lhe coubesse e até me deu pesadelos de noite. Diferentemente de minha mãe, ele deitou a galinha num cepo dando-lhe depois uma machadada com tanta força que separou a cabeça do corpo. A galinha antes de perceber que estava morta, pôs-se às voltas a correr com o coto do pescoço a jorrar sangue às golfadas e eu nunca mais consegui apagar essa imagem. E foi ali, sentada à beira do poço, que me veio à ideia enforcar o frango. Bem depressa me senti arribar porque me pareceu essa uma morte muito mais digna, já que evitava os derramamentos de sangue. E pelo que eu tinha ouvido dizer, os enforcados em vez de morrerem devagar, asfixiados, morriam muitas vezes num segundo apenas por se lhes partir o gorgomilo no laço da forca como um galho seco. Assim tinha eu ouvido contar nos Chãos, à saída da missa, sobre um homem que tinha amanhecido a baloiçar num ramo de azinheira para os lados da Enxofreira.
Entrei na capoeira com um cordel na mão que fui desencantar à despensa e fui-me ao frango marcado para morrer. Fiz-lhe um laço no pescoço e trouxe-o debaixo do braço até chegar à porta de casa, onde o poisei no chão. Depois passei pela argola da aldraba o baraço e, agarrando-lhe na ponta, respirei fundo para tomar coragem antes de dar um esticão com quanta força tinha. Mas quer fosse devido ao pouco peso do frango em comparado com o do tal homem que se tinha matado na azinheira da Enxofreira, quer fosse por razões derivadas da anatomia específica das aves de capoeira, em vez de se partir o pescoço ao frango como era suposto, pôs-se ele a estrebuchar contra as tábuas da porta numa tão grande confusão de asas a bater e penas a voar que se me partiu o coração dentro do peito com dó do frango. Dei folga ao baraço, deixando o frango voltar a poisar as patas no chão, e consenti que respirasse por uns segundos, azamboado de medo, de olhar esbugalhado a querer compreender o que se passava mas sem alcançar que eu estava prestes a matá-lo. Porque as aves não conhecem o que seja a morte nem sabem que a vida é só um riscar de fósforo que mal alumia qualquer coisa se apaga logo a seguir.
Mas a minha intenção não era, com este compasso de espera, dar lições ao desventurado do frango sobre o sentido da vida e da morte, como podia eu saber, se mal tinha ainda largado os cueiros, que o morrer duns serve o viver engordado doutros? Eu quis foi ganhar tempo a ver se recuperava o sangue-frio, porque sentia na fronte um latejo tão acelerado que até parecia que era eu que estava para morrer dependurada na porta. Inspirei fundo para encher os pulmões de ar e, com um estirão bem dado na guita, voltei a alçar o frango. Mas em vez de morrer num segundo, diabos o levassem, de novo se pôs ele a estrebuchar numa aflição agitada contra a nossa porta e eu, outra vez acobardada, dei folga ao baraço. E não sei dizer o que terá passado pela cabeça do frango nesses dois minutos em que voltou ao contacto com a firmeza do chão, mas eu, pela minha parte, o que pensei foi que, para mim, matar era quase morrer, com a diferença que continuávamos a viver para ver morrer outro frango no dia a seguir.
Voltei a içá-lo num repelão em que pus toda a minha têmpera, corada do esforço, mas para desesperança dos meus verdes anos mais uma vez o raça do frango se debateu no ar contra a madeira da porta, sem partir o raio do pescoço. Fiz três tentativas mais para dar ao animal a piedosa morte instantânea que eu tanto queria que ele tivesse, porém revelaram-se vãs todas elas. Acabei por ter de me conformar e esperar que o frango se torcesse, em agonia, à vista dos meus olhos, enquanto dois rios me corriam pelo rosto abaixo, lavando-me o pescoço, por um tempo que me pareceu a mim que nunca mais se acabava. Até que por fim a paz silenciosa da morte invadiu a nossa porta e o sossego instalou-se.
Quando a minha mãe regressou eu tinha os olhos entufados do pranto, mas a mesa estava posta e o almoço pronto a servir. Aprendi nesse dia que mais vale ser a frieza que mata sem piedade que a mão hesitante da compaixão que só mata após o suplício. Percebi que matava minha mãe com muita nobreza e que se eu sentia pena dos animais, então tinha de aprender a matar melhor, mais rápido e sem espavento, ou seja sem dor, ou seja com sangue. Eu bem me sentei com eles à mesa para comer, mas não pude engolir nem um bocado da carne daquele pobre frango que eu tão desastrosamente tinha matado.”