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António Lúcio Vieira (1942-2020) era um homem de múltiplos talentos, que dedicou toda a sua vida à arte da escrita. Foi jornalista, dramaturgo, escritor – mas era, acima de tudo, um poeta. Créditos: Médio Tejo Edições

António Lúcio Vieira (1943-2020) | O adeus a um poeta maior

António Lúcio Vieira era um homem de múltiplos talentos, que dedicou toda a sua vida à arte da escrita. Foi jornalista, dramaturgo, escritor – mas era, acima de tudo, um poeta, um homem de sentimentos e ideais à flor da pele. Problemas de saúde que se vinham agravando nos últimos anos impuseram hoje um ponto final numa vida que, apesar de longa, não foi suficiente para revelar ao mundo todos os monumentos em forma de palavras que lhe nasciam nos dedos, a cada madrugada. No dia em que se fez silêncio na sua casa, em Torres Novas, pedimos a amigos que partilhassem com os nossos leitores algumas palavras em homenagem a este poeta maior.

“A vida nunca lhe outorgou o mérito e o proveito, nem os privilégios de arautos ou arengadas panaches das passadeiras do celestial encanto. Nem os prémios nem os respeitos e dividendos. Frágil cultura – ingrata lavoura, a das palavras. Tenho para mim que tudo na vida lhe foi difícil. E que desse cinzento amargo da sua própria cinza ele soube erguer uma poesia de culto e de excelência, forte e sabia como punhos e cometas, gritando essa injustiça nas entrelinhas da sua paixão, de raivas e delírios construída.”
– Pedro Barroso, no Prefácio de “25 Poemas de dores e Amores”, de António Lúcio Vieira, livro distinguido com o Prémio Literário do Médio Tejo, em 2017

Talvez tenha sido o maestro Pedro Barroso, amigo de muitas lutas, quem melhor soube definir quem era António Lúcio Vieira: “Um homem que vive ele próprio, dia a dia, em poesia”, um homem “agitado convulso impulsivo desordenado, tudo assim mesmo – sem vírgulas”. 

Assim era o poeta, eterno insatisfeito, inconformado, sôfrego na procura de um sentido para as palavras que ganhavam vida, desordenadas, no seu íntimo. A sua obra permanece também ela desordenada, publicada de forma dispersa ao longo das décadas, e muitos textos estão ainda inéditos, mexidos e remexidos por António Lúcio Vieira – que os ia gravando em CD’s por não confiar na formatação dos textos enviados por email – enquanto aguardavam a oportunidade de terem a devida e merecida atenção.

A dispersão da obra não ajudou a alcançar o reconhecimento que lhe era devido, mas nos últimos anos havia cada vez mais leitores a descobri-lo, depois de em 2017 ter sido distinguido com o Prémio Literário do Médio Tejo, na categoria de Poesia, com o conjunto de poemas inéditos revelados no livro “25 Poemas de Dores e Amores”, lançado na Feira do Livro de Lisboa, em 2018.

Coube ao presidente da Associação Casa-Memória de Camões, António Matias Coelho, o privilégio de ler esses poemas em primeira mão, como responsável do júri do Prémio Literário do Médio Tejo na categoria de poesia. Matias Coelho recorda que entre as “centenas” de poemas que leu, houve um que o “tocou particularmente” por ser “tão perfeito, tão intenso”. Tratava-se de “Melopeia para uma longa negra noite”, que contrabalança a “imensa tristeza” e a “amargura” com uma força “enorme” e “tocante”, levando-o a conhecer “não só um poeta maior, mas também um poeta maduro com conhecimento profundo da vida” e domínio das “técnicas”.

Apresentação de’ “25 poemas de dores e amores”, de António Lúcio Vieira, na Feira do Livro de Lisboa, com a encenadora Ana Paula Eusébio e a editora Patrícia Fonseca Créditos: mediotejo.net

 

António Lúcio Vieira publicou o primeiro livro de poesia em 1974 (En Volvimento, ed. Autor), a que se juntaram uma dezena de outras edições, ao longo dos anos, desde a área do teatro (como a premiada peça Aldeiabrava, Ed. Fotograma), à novela (De Nós, Helena, de Novo, Ed. Nova Augusta) e aos contos (Contos das Terras d’Água, Ed. Vieira da Silva). Foi redactor principal no semanário O Almonda, de Torres Novas, e colaborou, ao longo dos anos, com vários meios de comunicação social, a nível nacional.

Em 1997 foi distinguido pela Casa do Ribatejo com os diplomas de Mérito e de Louvor e, em 2015, recebeu a Medalha de Ouro de Mérito Cultural do Município de Alcanena, de onde era natural.

Em 2018, lançou pela primeira vez um livro na biblioteca da sua terra natal, momento que muito o emocionou, perante uma plateia cheia de amigos e admiradores, com a apresentação de António Mário Santos, que sobre esse “25 Poemas de Dores e Amores” diria:

“Poderia tentar defini-lo como um espelho em que o poeta encontra sempre uma imagem diferente da sua, um rosto perspicaz, dorido, desencantado, em que descobre avulsos sinais dum outro, que foi o seu, nos muitos anos de amores e desamores que a própria memória já confunde. Um outro que lhe conta o que foi, mas de que já mistura os sinais, já que o presente assenta numa dorida e consciente ausência: do que sonhou ser, do que quis ter, do que o tempo lhe colocou no olhar como uma redescoberta, da fragilidade do desejo, da consciência da efemeridade dos sonhos, dos barcos esvaziados e ósseos nas praias da alma dum artista-poeta que acima de tudo acreditou ser possível viver da magia da palavra que nascia, do texto que lhe ardia nos dedos, do filme que intentava um novo caminho de linguagem cinematográfica, dum programa de rádio capaz de marcar pela diferença e criatividade. (…) Um poeta que recuperou da noite do seu desencanto a luz do que vale a pena para se ser, do que acima de tudo importa, o que está escrito no livro de seu percurso em busca da humanidade que o fez um eterno vagabundo do amor pelo amor.”

Como escreveu Pedro Barroso no prefácio de “25 Poemas de Dores e Amores”, é urgente ler e reler António Lúcio Vieira mas quem quiser fazê-lo deve despir-se de atitude e abrir a porta do sentir:

“Sofra com ele tudo que não foi e devia ter sido. Tudo o que se sonha e nunca se cumpriu e a alavanca imensa que nas suas palavras transcende a semântica e o bom comportamento sindical das palavras domesticadas. Com ele as palavras são, cada uma, um grito de alma próprio na junção da ideia. Uma pincelada do sentir. (…) Com imagens tão fortes, que temos de mergulhar nelas com atenção dobrada e com coragem. Porque em tudo o que sentimos perpassa a emoção de um homem livre, um poeta de eleição e profundidade, um pintor do drama de existir, com a ironia que logo preside e desafia a nossa sempre anunciada finitude.”

Quem o conheceu, nunca o esquecerá. Quem o ler, nunca o perderá. Até sempre, amigo Lúcio. Lamento muito que tenhamos de interromper os nossos sonhos peregrinos, “por motivos de força maior”.

de força maior
(António Lúcio Vieira, in “25 Poemas de Dores e Amores”)

leio no vento um inquieto desassossego
leio no vento um medo de cerzir as palavras
que chamei para colorirem as tardes que passam
soltas no rio que se perdeu da foz.
havia sempre no vento como um murmúrio
um barco a navegar na espuma das lágrimas
e um vazio de tragédia em cada silvo
em cada rajada de voz.

a vida não é bem o meu futuro.

que um dia deixarei a liberdade
e a guerrilha e outras bandeiras de existir
e voltarei ao livro dos profetas
às enxadas da memória que cavam
cavam o tempo até se quedarem
nas leiras dos meus segredos.

o meu pai sabia os trilhos do destino.
o meu pai foi construtor de viagens e de sonhos
e depôs tudo de si na arca dos meus anseios.

há um céu nos olhos de quem me soletra o poema.
tem de haver. E eu apenas vos deixo uma precária felicidade
um poema onde se mora e tudo mora
desde o sol que há por exemplo nos teus olhos
ao meu pomar de doce-amargos frutos.

a vida não é bem o meu futuro.

que bom voar o sol pelos teus olhos.
o vento ainda solta ao vento os seus caminhos.
deixem-me o esplendor das alvoradas
a música dos regatos e o desgarrar das cotovias.

por breves instantes
que de longe me chamam e me dizem
que é urgente interromper o sonho peregrino
por motivos de força maior.

António Mário Santos, professor e escritor, Torres Novas

Conheci o Lúcio, desde a juventude. É uma voz importante da cultura portuguesa, com a pouca sorte de não ter feito parte dos grupos que, em Lisboa, monopolizam  quem é quem na vida literária nacional. Sinto pena pela insatisfação do sonho da sua vida, ao qual sacrificou emprego, mulher, filhos, família. Foi um desadaptado num mundo cruel e pouco sensível à criatividade, mas nunca abdicou da marginalidade duma vida em que a palavra escrita respirava 24 horas por dia.

A sua realidade perdia-se no imaginário do seu agudo narcisismo, transformando o quotidiano numa ilha cada vez mais inóspita, agravada com o desenrolar da doença a que resistia com o humor trágico da ironia dolorida. Fica dele um espólio que temo não seja resguardado como mereceria, além de flashes de encontros/desencontros que foi o seu padrão de existência. Viveu como pôde, nunca como quis, e sempre amargurado quando sentia que não conseguia transformar em realidade o mundo em que se movia.

Nuno Garcia Lopes, poeta, Tomar

Conheci o Lúcio pessoalmente apenas há uns três anos, quando um prémio e uma editora deram à literatura do Médio Tejo uma consciência e consistência colectiva que até aí não existiam.

Mas ele era já um nome de certa forma tutelar para quem como eu se entregara a este mundo das letras quando ele o vivia na sua plenitude, o que lhe deixou traços de personalidade e até físicos marcantes.

Apesar de curta, esta convivência foi intensa. Estar com o Lúcio era só por si um acontecimento, tal o prazer de o ouvir contar histórias, falar do meio e das suas experiências, ler-nos poemas.

Vivia com tal intensidade a poesia (onde lhe era devida uma visibilidade maior do que aquela que tinha), que de vez em quando lá surgia um amigo dizendo estarrecido: “Olhem o poema que o Lúcio hoje me enviou”.

Homem assertivo, coisa que os poetas nem sempre conseguem ser, as suas palavras foram claras num poema de 2019: “exijo que os rios naveguem / os sonhos de quantos ainda sonham”. Por isso, tenho a certeza que, como dizia no mesmo texto, ele está aqui e persegue e persegue “a suave viagem dos rios”.

Adelino Correia-Pires, alfarrabista, Torres Novas

“Agora, deveras, tenho pena”

Lembras-te Lúcio? Lembras-te do dia em que morreu o poeta?

O Herberto partira e deixava-nos assim sem saber o que dizer.

Ao teu modo, enviaste-me então um poema do outro mundo.

Li, reli e pasmei. Lembro-me de te ter dito: Ó Lúcio, tens que publicar isso, ó homem!”

No dia seguinte, entraste pela livraria, fitaste-me nos olhos, puxaste dum papel e disseste o poema com a força de quem o escreve.

Senti naquele momento a simbiose entre dois poetas maiores: um, o que acabara de partir. O outro, o que ali lhe lavrava a memória. Autobiográfico, talvez, mas como só tu o poderias fazer.

Mais tarde, alguém to publicou e com ele ainda desabafavas, num misto de sonho e de premonição (a negrito com gostavas de fazer): “… agora, quase póstumo, não tenho muito jeito para homenagens e começo a esquecer-me como se chora!…”

Agora, foi a tua vez, Lúcio.

Como escreveu o Pedro Barroso num prefácio sublime tocado de ouvido, foste mesmo um poeta maior. Agora, relembro o Herberto, lembrado por ti. Vou ouvindo o Pedro já longe daqui. E folheio o vazio, deixando murchar os cravos que te aconchegam alma e te capeiam os livros.

E agora, que já não fumas, não te cairá mais a cinza do cigarro, nem ela te fará falta como primeira estrofe.

Mas agora, que do quase partiste para o sempre, sempre póstumo, acredita que ficam as palavras.

E agora, deveras tenho pena.

Margarida Teodora Trindade, diretora da Biblioteca Gustavo Pinto Lopes, Torres Novas 

“Andarei por certo na crista do infinito/ sorvendo as vozes dos deuses e navegando/
na vertigem febril de peregrino/ por onde me leva o vento”
In 25 poemas de dores e amores, Médio Tejo Edições, 2017

Do Lúcio Vieira guardarei a satisfação que ele tinha de uma boa e longa conversa entre amigos, o contentamento de ter um livro no prelo, a antecipação irrequieta do lançamento, de o saber amante noctívago das palavras, poeta dos amores e das dores, apaixonado pelos palcos. Dos encontros e desencontros que tivemos, fica aquilo que foi o mais importante, o sorriso franco dos reencontros.

Evelina Gaspar, escritora, Vila Nova da Barquinha

Cruzei-me com o Lúcio apenas quatro ou cinco vezes, mas percebi logo que ele amava, para lá do verso, a conversa. Sofreado no primeiro, torrencial na segunda, era eloquente em ambos. E se as palavras forem luz, como de facto são, o Lúcio, donde está, poderá iluminar aqui ainda muita sala escura com as palavras suas que ficam por cá como fachos, inscritas na pele dos dias. Até à vista, Lúcio.

Joana Santos, professora e escritora, Torres Novas 

Hoje, à hora do almoço, uma mensagem: “… penso que o nosso amigo Lúcio virou estrela”. Sem mais, eram palavras de uma amiga comum. Se em vez de Lúcio, que tantas vezes caiu, se levantou, resistiu, se chamasse outra coisa qualquer, teria de imediato percebido o eufemismo.

Tratando-se dele, das conversas havidas, de sonhos calcorreados, suados, tantas vezes percorridos e adiados, que julguei tratar-se de um prémio importante, aqui ou no Brasil. E fiquei feliz. Voltei atrás para confirmar o nome. Não havia prémio.

Lúcio, hoje perdemos-te ou foste tu que te perdeste de nós. Iniciaste, mais uma vez, teimosamente, o caminho, sozinho e cansado. Partiste, “sabendo que os sonhos desabrocham sempre sem a bênção de um deus magnânimo e feiticeiro.” Palavras tuas, plasmadas num dos teus “25 poemas de dores e amores”. 

Graça Martins, ilustradora, Torres Novas

Assim vai o poeta com um livro entre mãos. Contador inesgotável de histórias e uma teimosia criativa a fervilhar. Um pouco de amargura, muita ilusão. Um café e uma broa no entusiasmo da conversa com horas demoradas. Uma promessa ainda. Sobre este último que falámos, o desenho está pronto Lúcio Vieira. 3 batidas curtas, 3 batidas longas. Silêncio, vamos começar.